Lou Andréas-Salomé

Dela disse Nietzsche, um dia, ser “de longe, a pessoa mais brilhante que conheci”. Se a afirmação é ou não verdadeira tal não é pertinente, antes revela claramente o fascínio que a figura desta mulher exerceu sobre os intelectuais mais importantes da sua época, como Nietzsche, Rilke e Sigmund Freud. Na figura de Lou confundem-se a personagem histórica e a lenda. A biografia escrita por Stéphane Michaud procura esclarecer os contornos que constituíram a personalidade controversa desta mulher que foi romancista, poeta, ensaísta, psicanalista e uma pioneira do modernismo europeu.

Famosa pela sua beleza e notável inteligência, Liolia von Salomé(1) nasceu em São Petersburgo, a 12 de Fevereiro de 1861, filha de Louise Wilm e de Gustav von Salomé, um alemão dos países bálticos, quinze anos mais velho. Descendente de hugenotes de Avignon, ocupava o cargo de conselheiro secreto do soberano, na corte imperial. Pertencendo às altas esferas da nobreza, Louise Wilm recebeu as felicitações do czar pelo nascimento de Lou, que foi educada no luxo cosmopolita da corte, condição que lhe permitiu desfrutar de uma ampla liberdade, assim como de um ambiente propício ao contacto e à aprendizagem das correntes filosóficas e literárias em voga. Com o seu estatuto de única menina (nasceu quando o pai já tinha 53 anos) foi excessivamente protegida, numa família de cinco rapazes, dos quais apenas sobreviveram três, Alexandre, Robert e Eugène, mais velhos que ela, respectivamente, em doze, nove e três anos. A presença tutelar dos irmãos projectar-se-á, posteriormente, sobre todos os homens que Lou conheceu. Igualmente, a figura do pai transformar-se-á numa figura omnipresente que a dominará por toda a vida.

Arrapazada, de cabelos curtos e frisados, a criança Lou revelou cedo os aspectos que iriam marcar a sua singularidade: um olhar independente e firme, uma personalidade enigmática e uma tendência imaginativa, que a levava a fechar-se na solidão de um mundo encantado. Durante a adolescência, o mais pequeno pretexto servia para que o pai a libertasse de todas as obrigações – o que terá contribuído para um alheamento em relação às actividades que ocupavam as outras jovens. Mais tarde, em adulta, ela sublinhará à amiga Frieda von Büllow a singularidade da sua infância, referindo que tinha sido o período menos feliz da existência (2).

O espírito crítico de Lou conduziu-a a uma atitude de descrença perante a religião. Recusando o ultra-conservadorismo do pastor Dalton, sedenta de independência e impaciente por viver, foi rejeitando, cada vez mais, a fé em Deus. Com a morte do pai, as esperanças de pacificação com a religião e com Deus desapareceram por completo. Poucas semanas após essa perda, e tendo ouvido falar de Gillot, um pregador em voga, defensor de novas ideias religiosas, dirigiu-lhe uma carta que era um pedido de socorro desesperado e na qual suplicava que a libertasse de dúvidas. Foi às escondidas que, no início, o ouviu pregar.

A intrepidez, inteligência e a sede de aprender de Lou atraíram Gillot que tomou a sua educação a cargo. Lou tinha dezassete anos e Gillot quarenta e dois. Era casado e pai de dois filhos. Lou representou para ele, não apenas um sonho de pedagogo, como transferiu para esse homem a imagem do pai perdido. A educação não se limitava apenas à religião, mas visava igualmente prepará-la para os estudos universitários que fará em Zurique, na Suíça, um dos raros países tolerantes que aceitava mulheres nos cursos superiores.

Gillot apaixonou-se por Lou e propôs-lhe casamento, perspectivando o divórcio. Embora o sentimento de Lou fosse recíproco, como mais tarde nas suas Memórias deixou transparecer (3), fugiu de Gillot, que lhe surgia como um obstáculo à sua liberdade, exactamente como fugirá, mais tarde, de outras relações com Paul Rée, Nietzsche e Rilke, quando justamente a pediram em casamento. O fascínio por Gillot desintegrou-se brutalmente e confessará posteriormente que no seu universo não havia lugar para o desejo nem para o sexo, nem tão pouco, espaço para um casamento.

Em Setembro de 1880, Lou partiu para Zurique, onde estudou lógica, história das religiões e metafísica. Ainda que se revelasse sobredotada, a sua saúde era frágil. Durante este período confirmou também a sua vocação literária, retomando os poemas escritos nos tempos da sua relação com Gillot e procurando publicá-los em diversos círculos universitários ligados a revistas literárias. No ano seguinte, em Abril, viajou até Roma, onde o clima mais ameno lhe permitiu o restabelecimento da saúde. Tinha pedido ao seu amigo Kinkel uma carta de apresentação para um dos espíritos mais livres do seu tempo: Malwida von Meysenburg. Européia convicta e adepta do livre pensamento, Malwida sonhava com uma sociedade humana liberta das cadeias da religião e dos seus dogmas, lutando para que artistas e filósofos conquistassem o lugar privilegiado que deveriam ocupar. Defendia ousadamente os direitos das mulheres e a sua participação na vida colectiva. As suas idéias arrojadas tinham-lhe valido o exílio definitivo da cidade natal e da Prússia. Pedagoga, ensaísta e romancista, melómana, Malwida tinha, aos sessenta e cinco anos de idade, uma carreira repleta atrás de si. O tempo de exílio que havia passado em Londres transformara-a numa acérrima e feroz defensora de Wagner, que havia conhecido em Londres. Malwida seguia atentamente tudo o que se passa em França. À sua volta formara um círculo de intelectuais, de escritores e artistas que defendia, apoiava e protegia da intolerância e incompreensão dos seus contemporâneos. Tinha acolhido Nietzsche e dois dos seus amigos em Sorrento, numa villa nas encostas do Pausilipo, onde o odor das laranjeiras se confundia com a brisa marítima. Doente, Nietzsche havia pedido à universidade de Basileia uma licença de longa duração e estava acompanhado por dois amigos. Um deles era o jovem discípulo Brenner, que lhe servia de secretário, e o outro era o filósofo Paul Rée, mais novo que ele cinco anos. Este ultimo concluía a sua obra A Origem dos Sentimentos Morais, enquanto Nietzsche trabalhava na redacção de Humano, Demasiado Humano. O estado de saúde de Nietzsche melhorara nesse Outono, permitindo-lhe visitar a família Wagner, que habitava nas proximidades. Porém, quando Lou chegou, na Primavera de 1882, a atmosfera tinha-se alterado substancialmente. A relação com Wagner degradara-se e Nietzsche sentia na pele as consequências do facto. A universidade de Basileia transformou a sua licença de um ano numa reforma definitiva o que contribuiu para um novo agravamento do seu estado de saúde. Rée, cujo temperamento neurótico já era visível, também não foi poupado. Quanto a Malwida, investiu toda a sua paixão nessa mulher-criança, cujo brilho intelectual e audácia a fascinavam. Lou conheceu então Paul Rée, sentindo-se cativada por este jovem filósofo de trinta e três anos, de espírito aventureiro e dado ao vício do jogo. Propôs-lhe viverem juntos, partilhar a casa e o amor aos livros e reunir em torno de ambos, os outros espíritos filosóficos. Rée, desconcertado, pediu-a em casamento o que provocou a cólera de Lou que imediatamente o rejeitou, explicando-lhe que desde a sua relação com Gillot tinha posto um ponto final à sua vida amorosa. Nessa altura e julgando servir os interesses de Lou, Rée escreveu a Nietsche, que se revelou predisposto a aceitar uma relação a três, (igualmente fomentada pela sua amiga Malwida), desembarcando de improviso em Roma à procura da “Russa” e do amigo. Imediatamente seduzido pela jovem, Nietzsche encarregou Rée de lhe servir de intermediário para lhe pedir a mão, o que provocou uma nova recusa por parte de Lou, que exigiu que Rée explicasse a Nietzsche a sua aversão pelo casamento e a perda financeira que isso representaria para ela, pois teria de renunciar à pensão que recebia das autoridades russas, na qualidade de aristocrata órfã. Mas a natureza solitária e a inteligência de Nietzsche não a deixaram indiferente. Sentindo-se demasiado atraída pelo filósofo, refreou essa atracção e refugiou-se na relação terna e protectora de Paul Rée, que a amava e que sofria com a sua indiferença física.

Nietzsche continuava obcecado pela ambição de formar um discípulo que pudesse ser iniciado na sua filosofia e a inteligência e independência de Lou imprimiram um novo rumo à sua existência. Em Lucerna, no Löwengarten, onde voltaram a reunir-se mais tarde, Nietzsche pediu-a novamente em casamento mas Lou manteve a sua recusa obstinada, deixando o filósofo estarrecido com a declaração de que lhe interessava unicamente cumprir a vontade de viver e entregar-se ao estudo da filosofia e da literatura.

Perante os projectos de Lou, que mantinha firme a ideia de viver com os dois filósofos, os irmãos tentaram demovê-la e impedir o escândalo, procurando fazê-la regressar a São Petersburgo. É Paul Rée, que ganhara a confiança da mãe de Lou, quem irá intervir no sentido de atenuar as tensões familiares. Entretanto, Nietzsche introduzira Lou no seu círculo de artistas e intelectuais de Bayreuth, onde ela provoca uma onda de choque pela sua audácia. A irmã de Nietzsche, Elisabeth, via com maus olhos as atitudes daquela jovem mundana e cheia de vitalidade, chegando a provocar altercações violentas e tentando, a todo o custo, destruir a relação entre Lou e o irmão. Por fim, o amor de Nietzsche transformou-se em amargura e decepção. A sistemática recusa de Lou levou-o ao desespero, à beira do suicídio. Só a embriaguez do ópio o salvava dessa dor lancinante, cuja experiência, depois de amadurecida o levou a começar a escrever Assim Falava Zaratustra. Em Fevereiro de 1883, o filósofo redigiu a primeira parte da obra em apenas dois dias. A fulgurância da sua prosa aproximava-se da leveza da poesia, onde a metáfora da dança ocupava um lugar importante. Foi assim que Nietzsche se libertou do fascínio que Lou exercia sobre ele. Jamais voltariam a encontrar-se. Na verdade, a sua irmã Elisabeth minara todas as relações entre os membros do círculo e instrumentalizara todos ao seu serviço: Rée e a mãe, Peter Gast, o músico, a própria Malwida. Não se sabe até que ponto Nietzsche terá finalmente compreendido os nefastos efeitos da teia de intrigas produzida por Elisabeth. No entanto, sabe-se o suficiente para reconhecer que, a partir de certa altura, Nietzsche rompeu com a irmã que acabou por partir para o Paraguai, onde casou com o teórico racista Bernhard Förster. O debate suscitado e os escândalos daí resultantes, alimentando a voracidade de um público ávido, remeteu Lou para um silêncio do qual não voltou a sair. (Mesmo quando Freud, muitos anos mais tarde, a insta a falar sobre o assunto, ela recusa). Respondeu sempre com um muro de silêncio que não a beneficiava, uma vez que não contribuía para clarificar a situação. Todavia, o afastamento de Nietzsche não lhe causou tanto dano que não permitisse que ela continuasse unida a Rée, encontrando, junto dele, não apenas a atenção e a ternura redobrada, como um certo apaziguamento. Quanto a Paul, a presença benéfica de Lou contribuiu para o afastar da paixão pelo jogo e para um reencontro com a tranquilidade. Juntos, reuniram à sua volta alguns dos espíritos mais promissores da época, na sua grande parte alemães e berlinenses, mas também dinamarqueses, como o crítico Georg Brandes, um dos primeiros autores a compreender o impacto da filosofia de Nietzsche, e livonianos, como o barão Carl von Schulz. Destes personagens próximos de Lou, eclodirão novas ciências e rumos decisivos, como é o caso de Hermann Ebbinghaus, fundador da Psicologia, e Ferdinand Tönnies, fundador da Sociologia.

Alguns deles declarar-se-ão a Lou e ela recusará todos os pedidos, convertendo-os em amigos enquanto mantém Rée junto de si. Em 1886, porém, o amigo sentir-se-á traído. A 1 de Novembro, a celebração do noivado secreto de Lou com Andreas, de cuja chegada Rée não se apercebera e que irá ocupar o seu lugar, obriga-o a partir, em princípios de 1887, pondo termo a quatro anos de vida em comum. Rée pediu a Lou que não voltasse a procurá-lo. O sentimento de culpa atormentá-la-á mais tarde, ao saber que Rée foi encontrado morto, em 1901, em circunstâncias estranhas.

Quer Malwida, quer Rée, tão próximos de Lou, ignoravam tudo acerca de Andreas. Porque razão, a certa altura, Lou decidiu casar? O que a terá motivado? A diferença de idades era considerável. Ele tinha 41 anos e ela 26. Príncipe e beduíno do deserto, numa sociedade na qual não se integrava e cujas regras tinha dificuldade em aceitar, era uma figura singular, tanto pela linhagem como pela experiência de vida, pois era filho de um arménio e nascera na Indonésia, em Jacarta. Quando jovem estudara no liceu de Genebra e destacara-se como aluno brilhante pelas suas aptidões musicais e linguísticas. Consagrara-se ao estudo das línguas orientais e tinha obtido o doutoramento em 1868, dedicando-se à leitura de manuscritos persas raros, nas bibliotecas de Copenhaga. Em 1870 a guerra interrompera as suas investigações e ele conseguira uma regência provisória na universidade de Kiel.

Para Lou, Andréas encarnava, em toda a sua perfeição, o ideal do sábio universal das épocas anteriores, o príncipe e o camponês, segundo o modelo russo. A aventureira deixara-se fascinar por esse poliglota que se afastava dos intelectuais que ela conhecera até então. Andreas destacava-se deles por uma “soberania das mais reais”, fazendo-a sonhar com viagens à Pérsia e indo ao encontro do seu lado selvagem e transmitindo-lhe um misto de doçura e de rebeldia que tanto impressionaram o dramaturgo Hauptmann e, posteriormente, Rilke e Freud. O casamento, nada convencional, foi realizado a 14 de Junho de 1887 e, alguns dias mais tarde, Gillot, a quem Lou se recusara na consumação do amor carnal, celebrou uma missa que envolveu Lou de modo mais profundo, oficiando e simbolizando a preservação do interdito, no seio do novo casal.

O projecto de vida comum estabeleceu-se com base numa comunhão de gostos e de estudos, tratando-se de uma união puramente intelectual. Lou obteve de Andreas a garantia formal de que nunca teriam filhos. Revoltava-se contra a ideia de pôr no mundo uma criança indesejada e não suportava a ideia de dar à luz. Repudiava qualquer ligação entre amor carnal e casamento, uma convicção, que Andreas esperava ver alterada, mas jamais se modificará.

O temperamento de Andreas contribuiu para que a actividade social da mulher diminuisse. O seu perfeccionismo e a permanência no Oriente haviam-lhe produzido uma estranheza relativamente aos hábitos universitários. Não conseguiu entregar, dentro dos prazos estipulados, a dissertação que lhe daria acesso ao lugar de professor, passando por reveses humilhantes. Entretanto, dedicava-se a estudar e a escrever um ensaio sobre a obra de Ibsen e de Nietzsche, de quem conservara as cartas.

Em 1890, a adesão do casal à Associação do Teatro Livre veio proporcionar a Lou os contactos que faltavam. Foi Georg Brandes, crítico dinamarquês, que redigiu uma carta de apresentação para o Deutsche Rundschau. Quanto a Wilhelm Bölsche, crítico, romancista e ensaísta, introduziu o casal no círculo de Friedrichsagen, onde residia. Lou conheceu aí jovens escritores para quem a literatura, bem longe de ser um passatempo frívolo, era um imperativo de ordem existencial, um conceito a que imediatamente aderiu, tendo começado a escrever para duas publicações berlinenses de renome e participando da vanguarda literária e artística mais prestigiada da época, com Tolstoi, Maupassant, D’Anunzio a Knut Hamsun. Em 1892 publicou o estudo que originará mais tarde o ensaio Personagens Femininas em Ibsen e, quatro meses mais tarde, escreverá uma série de artigos sobre Nietzsche, os quais serão incluídos num volume futuro intitulado Friedrich Nietzsche nas suas Obras (Viena, 1894).

Nesta boémia literária, cuja fantasia a afastava da austeridade e da disciplina do círculo de Rée, a mulher de quase trinta anos conheceu Georg Ledebour, conhecido pela sua liberdade, que o impedia de se subjugar à religião ou às convenções sociais. Foi essa fusão entre delicadeza e firmeza que atraiu Lou. Embora sensível ao fascínio desse terno amigo que lhe declara o seu amor, Lou resistiu-lhe mas tal paixão acarretar-lhe-á uma profunda crise, no casamento.

Esse aspecto doloroso da sua vida irá reflectir-se na sua obra, numa fase em que escreve com uma tenacidade obstinada, uma actividade que foi injustamente negligenciada, em virtude da sua dispersão por várias colunas de jornais. Dedicou-se igualmente à ficção, publicando, em 1885 Combate Por Deus e, em 1895, Ruth, o seu segundo romance, onde trata, ainda, a sua obsessão por Gillot.

Em 1894, no final de Fevereiro, a escritora desembarcou em Paris, onde foi aceita pela sociedade boémia e literária e conquistou a admiração dos críticos mais influentes, como escritora e ensaísta. Começou a corresponder-se com Schnitzler, que ela admirava profundamente e que irá, mais tarde, reencontrar em Viena. Mas em relação a esse tempo de Paris, onde redescobriu os prazeres mundanos, Lou confessou um certo desencanto, provocado por um afastamento do seu trabalho. De volta a Berlim, permaneceu aí durante o tempo estritamente necessário. Trazia de tal modo entranhado o gosto pelas viagens que partiu, ao fim de seis meses, para S. Petersburgo onde reviu a família e Gillot. Regressada a Viena, onde a atmosfera era semelhante à de Paris, encontrou Schnitzler e travou conhecimento com Hofmannsthal, Beer-Hofmann e Friedrich Pineles, o médico a quem se ligará numa intensa e duradoura relação. Pineles tinha na altura vinte e sete anos e Lou trinta e quatro. Nessa sociedade brilhante, extremamente requisitada e apreciada pela sua capacidade de comunicação, Lou revelava uma lenta eclosão, que fez com que Schnitzler traçasse dela o retrato de uma mulher volúvel, deslumbrante e desinibida, de uma euforia e um gosto pela vida invulgares e anotasse no seu diário esta curta mas decisiva frase: “A mulher começa a despertar em Lou” (4).

Quando Lou e Rilke se encontraram, o poeta era um jovem de 21 anos, com um talento prodigioso, em busca de reconhecimento literário. Colaborava em vários jornais e revistas e era, ele próprio, editor de uma revista que pretendia divulgar as novas tendências da poesia. A relação que se estabeleceu entre ambos foi a de uma mãe-amante para com um filho. No final de Maio, procuraram um refúgio nas montanhas, longe do bulício da cidade. Foi sob o olhar de Lou que Rilke iniciou um novo período de intensa produtividade literária, enquanto procurava compensar, a relação frustrada com a sua própria mãe, nunca inteiramente recuperada pela morte da irmã mais velha. Essa maternidade assumida em relação ao jovem poeta encontrou a sua primeira representação simbólica num baptismo. Rilke tinha recebido o nome próprio de René Maria. Lou, fascinada pelo ardor do poeta e pela sua virilidade amenizada pela doçura, procedeu a um requilíbrio em benefício do elemento masculino: converteu o nome René em Rainer. Esse renascimento, a que Lou preside, não se limita apenas ao nome e arrasta o poeta para um despojamento e para uma simplicidade que libertam a sua poesia de todo o sentimentalismo, obrigando-o a voltar à essencialidade e à celebração claramente existencial, da vida e do mundo. Stéphane Michaud (5), na sua biografia, refere que a fase mais intensa da paixão entre ambos ocorreu entre 1897 e 1901, mas Lou, de comum acordo com Rilke, queimou as cartas relativas a esses anos e só é conhecida a troca de correspondência a partir de 1903 até 1921.

A 26 de Abril de 1898, Rilke, Andréas e Lou deixaram Berlim em direcção a Moscovo. Sobretudo após esta segunda visita, o poeta reconheceu que a Rússia se tornara o seu mundo e a escrita permitiu-lhe transfigurar essa viagem espiritual. Os viajantes partilhavam a mesma paixão pela Rússia antiga, pelas suas paisagens e pelo seu povo e Rilke compôs, em Agosto desse mesmo ano, o ciclo dos «Czares», (seis peças que integrarão a segunda edição do Livro das Imagens, que sairá em 1906), e depois, em Setembro e Outubro, «As Preces», que constituirão o original do que virá a ser o Livro das Horas (1905). Rilke também se dedicou à aprendizagem da língua russa, tendo traduzido A Gaivota, de Tchekov, bem como os poemas do poeta camponês Drojine.

Paradoxalmente, esta viagem afasta Lou de Rilke. O seu diário deixa compreender como a imagem do pai se sobrepõe à do amante. A angústia existencial de Rilke indispunha-a, transformando-o numa figura ameaçadora. Incomodada pela sua presença, aos quarenta anos e reencontrando na mítica Rússia a serenidade desejada, Lou sentiu-se incomodada pela presença de Rilke, forçando-o a partir. Sem remorso, considerou natural que se afastassem para que ambos pudessem crescer.

Sob a orientação do psicoterapeuta sueco Poul Bjerre, Lou iniciou-se no estudo da Psicanálise, acompanhando-o ao congresso internacional em Weimar, em Setembro de 1911. Mais tarde, afastando-se da posição teórica de Bjerre, que se distingue de Freud, Lou tornou-se de uma fidelidade inquebrantável relativamente ao fundador da psicanálise, durante vinte e cinco anos. Só a morte de Lou porá termo a essa relação. Freud confiou-lhe também a orientação da filha Anna, estabelecendo-se entre os três uma cumplicidade intensa. Depois da Guerra, quando Lou sofreu dificuldades económicas, foi o seu dedicado amigo Freud quem a ajudou. Na última fase da sua obra, Lou procurou conciliar a influência da psicanálise – ela própria torna-se psicanalista – com a literatura. Nasceram dessa confluência, os seus mais estranhos contos, povoados por figuras e personagens que se apresentavam como representações simbólicas intensas. De alguma forma, a sua obra surgiu integrada numa contra-corrente literária, pois na literatura alemã distinguiram-se outros autores, mais marcados pela vanguarda da estética expressionista, mais trabalhada pela política, como é o caso de Döblin, de Kastner ou, ainda, de Werfel. Finalmente, Lou escreveu As Memórias, obra que se revelará posteriormente, como um manancial e um testemunho da sua vida, mas onde a sua postura se mantém discreta e reservada, mesmo relativamente aos factos mais importantes e relevantes. Lou sabia exactamente que compunha a derradeira imagem com que havia de deixar o mundo: a de uma mulher com uma beleza que a acompanhará até ao final da sua vida, tendo sempre do seu lado a vida (como dela disse um dia Rilke) e uma capacidade de dádiva que apenas se encontra nas almas superiores. Disso são prova as relações constantes e duradouras que manteve com os homens (amigos e amantes) até ao final da sua vida que terminou a 5 de Fevereiro de 1937, pouco antes de completar sessenta e seis anos.

Lou teria gostado que as suas cinzas fossem dispersas pelo seu jardim. Esse desejo seria, certamente, o modo poético de reconciliação com a terra, o elemento que ela tinha amado. Porém, as autoridades recusaram-lhe esse gesto último e a urna foi enterrada ao lado do corpo de Andreas. Uma morte discreta a celebrar o esplendor do que foi a sua vida, guiada por uma liberdade radical.

 

Notas

(1) É Gillot quem, mais tarde, lhe dará o nome de Lou.

(2) Stéphane Michaud, op. cit., p.34.

(3) E também nos poemas “Prece à vida” e “A Dor”.

(4) Diário de Schnitzler, 1893-1902.

(5) Na obra biográfica, já anteriormente citada, Lou Andreas-Salomé, p.155.