RAIMUNDO | CONTO IV | COLECTIVO NAU | Carla M. Soares

 

 

Dizem que Raimundo conheceu muito mundo. Que andou por muitas terras e conheceu muitas gentes, viu as bestas marinhas e os homens-cão, essas coisas de reverso do mundo que nunca ninguém encontrou em todos os anos de navegação na terra e no espaço, mas vivem na imaginação e a imaginação, todos sabem, é o princípio e o fim de todas as possibilidades.
Eu cá não sei. Sei que andou no mar, adivinhei pela cor da pele e pela grossura dos braços como cordame de vela, pelo ar de quem ao chegar já partiu, olhos no horizonte mesmo que o horizonte seja rectângulo de janela, mas quando me cruzei com ele era bicho silencioso e pouco me contou das suas andanças. Tinha voz rouca, imaginei-a a comandar atenção se a levantava, ouvi-la, ouvi a pouco, até o copo de vinho pedia erguendo o vidro vazio. Preferia sentar-se calado como o vi nesse dia e noutros, com o olhar longe dali, a quietude de um mar lá dentro a levá lo dali para outras partes. Talvez pensasse em terras de ninguém com seres que eu nunca vi, isto imaginei eu, nunca mo disse, e se lhe perguntava alguém encostado ao balcão,
– Ó Raimundo, o que é que achas,
Raimundo encolhia os ombros. Nunca lhe conheci outro amigo senão eu, e eu era seu amigo mas ele não sei, eramos companheiros de mesa e copo e absoluto silêncio.
– Não quero peso de gente,
foi o que me disse quando me sentei pela primeira vez ao seu lado ao fundo da taberna, onde estava mais escuro. Não respondi, porque não podia, que ninguém me levaria consigo porque eu não tinha nome para oferecer. Homem sem nome não chega a homem. Nem teria as minhas histórias porque não tinha voz para contá-las. Abri em vez disso a boca para ele ver o espaço vazio onde devia estar a minha língua. Também não lhe contaria a história de como a perdera em moço, por tê-la demasiado comprida e dizer o que não devia. Negra história. Nunca mais diria nada, porque me repugnavam os sons que a minha boca vazia agora deitava ao mundo. Era mudo, pois, surdo não.
– Sou de Cuba no Alentejo,
acrescentou, como se isso o redimisse do olhar aguado debaixo das sobrancelhas sem cor e do cabelo comprido e louro e espesso, o ar de viquingue perdido em terras mouras, homem grande, grande, o topo da cabeça quase a tocar na trança de cebola suspensa do tecto feito a pensar nas estaturas comedidas dos homens alentejanos. Vi no olhar azul desse mar caribenho da TV, mar de piratas, ou se calhar vi foi em mim, mas é certo ter visto que no primeiro dia em que os abriu e fixou os de sua mãe, antes mesmo de saber o que era ser gente, soube que trazer consigo os nomes e o amor dos outros era trazer o peso das suas vidas. Calou-se, pois, criança de pouco choro, adulto sem palavras, para não deixar nem levar nada de si e consigo.
– Se vais à procura de conversa, não a encontras aí, ó mudo,
riram-se todos da graçola do taberneiro,
– Que esse aí desde que veio da guerra não abre a boca. Um bicho qualquer levou-lhe a perna e comeu-lhe a língua em Angola. Quem te comeu a tua, alguma gaja,
e riram-se todos outra vez, como se não soubessem que o marido ofendido que ma arrancara numa noite escura, prometendo livrar-me de outros dos meus pesos mais preciosos se apontasse o caminho de sua casa à Polícia, me espreitava duas mesas adiante, arreganhando os dentes podres na alegria do poder do medo. Olhei para Raimundo com outro mundo nos olhos, a perguntar-me sobre o seu medo, e vontade de espreitar para debaixo da mesa, para saber se teria perna de pau como algum pirata de outra era. Pirata de Caraíbas nos olhos, conchas nas orelhas, areia nos cabelos. Em vez disso segurei-lhe o silêncio com o meu silêncio e intersectamos os nossos mundos, o dele fora de si, o meu dentro de mim, fechados num copo de vinho.
Sabia portanto dele muitas coisas que não me disse, sei lá se as viveu, eu podia sabê-las todas porque não lhas perguntaria nem ele mas negaria e ficariam na minha memória como se verdadeiras. Sabia que guardava cheiros em vez de nomes, mas não de gente, só o dos seus passos nas terras por onde passara. A viagem de autocarro de Cuba para Lisboa cheirava-lhe a fumaça de escape e suor, Lisboa era pressa e pombos, o cheiro do mar era sal denso e peixe, às vezes tempestade. Havia lugares com cheiro a asfalto e a pó de chão, e lugares com o perfume verde das folhas, com o aroma do côco, com o fedor das lixeiras, das latrinas, com o picante adocicado do caril, com a leve fragrância de flores, com o odor quente de grandes bichos. Da gente, achei eu, se trazia algo era o fedor do sangue, das vísceras. Eu não tinha ido à guerra, um homem sem língua não servia para a morte dos outros, a guerra podia pois ser o que eu quisesse. Nos olhos de água de Raimundo, ela era a bala que subia pelo cano da arma num odor chamuscado e ia enterrar-se na carne preta. Era a que, de regresso, levava um olho a um companheiro, a vida a outro. Era o cheiro do mato e do capim, tinha ouvido dizer que podia ser alto como um homem, mesmo assim via a cabeça loura de Raimundo sobressaindo como um farol entre as ervas, os mouros lusitanos todos mais pequenos que os seus ombros. Talvez isso lhe tivesse custado a perna. Decidi que não. Fora um jipe de combate derrubado por uma mina, tombado à beira da estrada, o gigante Raimundo berrando os seus últimos berros antes do silêncio, de espanto, de dor, ele perdia a perna, era pouco, outros perdiam para sempre o fôlego. Vira fotos assim, um soldado agarrado à barriga que se vertia para fora, outro inteiro como se dormisse, dois ou três acocorados em redor dos que punham nessa madrugada fim a todas as batalhas.
– Ó Raimundo, diz aí qualquer coisa ao mudo, olha dois doidinhos,
Os homens riam-se porque era fácil rir de quem não lhes levantaria a mão e nem sequer a voz. Raimundo levantou em vez disso o copo e abriu um sorriso de dentes brancos, o da frente lascado.
– Falo com a tua mulher,
rosnou, ouvi-o eu, o taberneiro de costas rodava a torneira da pipa para outro copo. E eu vi Raimundo com as fartas carnes da mulher de outro entre as mãos, silencioso no ofegar ansioso do sexo como era na vida, mulheres muitas, nunca uma sua para não perder a alma como perdera a perna.
– Tenho fome, queres comer,
pensei, toquei-lhe no braço e fiz sinal, podiamos comer juntos agora que o conhecia melhor do que ao meu pai, dele nem a cor do cabelo lembrava e não lhe queria imaginar voz nem intenções, não fosse encontrar desamor por mim na raíz da sua partida intempestiva, a salto fronteira afora para terras de França,
– Mulher, vou ganhar a vida,
parece que disse a minha mãe, mas e se ao pensar nisso em vez dessas palavras, outras,
– Mulher, estou farto desta vida,
razão suficiente para se ter feito invisível desde esse dia. A Raimundo via-lhe eu a forma e criara-lhe eu um feitio, mas não me feriam as causas da sua ausência, mesmo enquanto ainda ali estava, menos ainda quando não estivesse.
– Então, queres comer ou não,
mas da inexistência da minha língua só se ouviu «hum, hum». Ele soltou um grande suspiro, tanta impaciência num bocadinho de ar, estendeu a mão para uma muleta de pau encostada à parede, que pena, uma muleta em vez de pirata da perna de pau, levantou-se pesado e enorme e saiu em passo largo de perna e amparo.
Esse foi só o início. Depois tive Raimundo muitas vezes à minha mesa, só um copo de vinho até a estranheza se fazer costume e se habituarem na taberna e na aldeia que mudo e perneta se sentavam juntos, dois círculos de vazio com uma mesa no meio. Vazio para eles, que silêncio não é vácuo. O meu pequeno espaço passara de cheio para atravancado, agora que trazia comigo não só a minha vida mas um mundo alheio que crescia a cada dia. Não havia mundo melhor, no que de mais feio e mais belo, por ser todo só meu com outra pessoa dentro. E na verdade, se Raimundo vira muito mundo eu não sabia, mas, olhando para dentro, via-o eu todinho pelos olhos que ele nunca virava para mim.

Carla M. Soares