Os Memoráveis, de Lídia Jorge

Dois homens falam entre si. Falam em inglês e, ocasionalmente, mencionam uma mulher como se ela estivesse ausente. O mais velho, o antigo embaixador, convida a portuguesa a juntar-se-lhes, pretende lançar um desafio: recolher o resto da metralha entalada entre as pedras da calçada portuguesa. A metralha que se solta em todas as revoluções, mesmo quando feitas por um povo tão sensato como o português. Red carnations recorda, após algum esforço, o nome da flor que enfeitou os canos das armas.

O antigo embaixador invoca uma gente mansa, uma gente que todo o ministro gostaria de ser dirigente, todo o sacerdote gostaria de ser pastor, todo o provedor público gostaria de defender. Um povo inofensivo que tomou para hino da sua revolução uma marcha lenta que começava pelo movimento dos passos, uma canção que falava de uma árvore.

O antigo embaixador pretende que o seu afilhado, o segundo homem presente na sala, realize um documentário sobre essa revolução. Não pretendia atestar a sua vitória pessoal, mas testemunhar que, ao menos uma vez na vida, tinha feito parte da aragem benéfica da história.

Para convencer a portuguesa entrega-lhe um conjunto de cartas, correspondência que, trinta anos antes, recebera no exercício do seu cargo. Eram cartas inofensivas de quem pretendia endireitar o país, derrubar perigos iminentes e eliminar inimigos, mas tudo sem infligir dor, sem maldade e, sobretudo, longe do olhar. Os autores dessas cartas pediam uma ajuda para a harmonização de tudo e de todos. Em toda aquela escrita havia uma pena passiva, uma doutrina da bondade pura só possível entre gente titubeante e submissa. Eram os portugueses no seu misticismo religioso de povo visitado em Fátima. Aquela era a correspondência portuguesa.

O antigo embaixador pretende uma narrativa luminosa na qual uma pessoa se reveja. Era preciso encontrar um ponto âncora a partir do qual tudo se construísse e ao qual se podia sempre regressar. A portuguesa sabia bem o que procurar. Na casa do pai, em Lisboa, encontraria o pretendido: uma velha fotografia tirada na véspera da revolução dos cravos, no restaurante Memoires. Um grupo de homens pousava para a foto. Eram os Memoráveis.

O livro de Lídia Jorge traça o trajeto desses homens no dia da revolução, as suas aspirações, os seus sentimentos, a sua felicidade e o que se seguiu, o que ficou por contar, os sonhos desfeitos, a metralha presa na calçada portuguesa que urgia libertar. Era preciso investigar, entrevistar, seguir o faro e, como os caçadores, deitar fora a maior parte da caça. Repetir o gesto do fotógrafo que, no último momento, desvia a objetiva do Presidente do Concelho deposto e se fixa no rosto dos guardas da GNR que o escoltam. Como se um certo pudor cúmplice acompanhasse todos os que, naquele momento, faziam a revolução sem a entender. Apenas a emoção e a esperança os acompanhava. A revolução acontecia por ter sido muito desejada.

Lídia Jorge dá vida palpável às memórias desses homens, da mesma forma que cria personagens absolutamente reais, dotados de densidade psicológica e mundo interior. Acreditamos em todos eles na exata medida que lhes sentimos as fragilidades. Da  calçada portuguesa arrancou diamantes lapidados.

Neste país, periferia de todas as periferias, escreveu-se a mais bela página da história de todas as revoluções. Lídia Jorge materializou-a num romance. Estamos por inteiro neste livro, nele coube a alma portuguesa. Fez-nos grandes, como sempre nos sentimos quando revisitamos a nossa história.

(publicado em Acrítico, leituras dispersas)

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Passagem do livro:

Tudo começava pela combustão do fósforo sobre o fornilho. A princípio uma pequena chama direita surgia brilhando entre as suas mãos, mas logo era engolida, com um sorvo, para dentro do pequeno casco, e um fio de fumo começava a desprender-se do engenho como se fosse um traço ondulado. Depois é que se formava a nebulosa, e no meio das longas espirais, a figura do meu pai enevoa-se e desaparecia. Com ele desapareciam a secretária de rolo, a taça de pedra, a montanha de livros, e acabava por desaparecer também o próprio cachimbo.

Memoráveis LJ