“Andrei Rodosski – Entre escombros e flores, não deixar que a chama se extinga”

Neste ano de 2011, em que se assinalam 95 anos sobre a morte de Mário de Sá-Carneiro (26 de Abril de 1916), foram editados, em São Petersburgo, no volume XXVI da revista literária “Sfinx” (“Esfinge”), 10 poemas do escritor, traduzidos em russo (“Álcool”, “A queda”, “Nossa Senhora de Paris”, “Salomé”, “Certa voz na noite, ruivamente…”, “16”, “Sugestão”, “Taciturno”, “O resgate” e “Campainhada”. As traduções são de Andrei Rodosski, poeta, filólogo e tradutor, professor do Departamento de Filologia Românica e do Departamento de História da Cultura Russa e da Cultura Europeia Ocidental da Universidade Estatal de São Petersburgo.

Não é a primeira vez que Mário de Sá-Carneiro é traduzido em Russo (as primeiras traduções apareceram em 1974, na antologia “Poesia Portuguesa do Século XX”, organizada e prefaciada por Helena Golubeva), nem a primeira vez que o professor traduz o genial poeta português. Mas é, em grande parte, devido ao trabalho, empenho e talento de Andrei Rodosski, que a chama da literatura portuguesa e da literatura de expressão portuguesa se mantem viva em São Petersburgo.

A literatura desconhecida

Sempre gostou muito de ler – literatura clássica, tanto russa como ocidental, e de aprender línguas (domina não só o português, mas também o galego, espanhol, francês, inglês, latim e eslavo antigo). Mas a literatura portuguesa sempre foi pouco conhecida na Rússia, e foi a curiosidade que o levou a estudar o português. “Li Camões e o livro de contos “Escura era a noite” (editado em 1962, primeira tradução de literatura portuguesa em russo depois de uma pausa de muitos anos, em que aparecem, pela primeira vez, autores como Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, José Gomes Ferreira, João Gaspar Simões, Miguel Torga, Manuel da Fonseca, Alves Redol, Fernando Namora, José Augusto França, José Cardoso Pires). Fiquei muito interessado e curioso e por isso decidi ingressar na Secção de Literatura Portuguesa.” Dois professores que o influenciaram muito e incentivaram foram Helena Golubeva e Anatólio Gach.

Entre 1980-1981 trabalhou, como intérprete, em Moçambique, na província de Nampula, para uma empresa Soviética do cultivo de algodão. Gostou muito das gentes, da natureza, da arquitectura. Mas recorda também os pedestais dos monumentos depostos dos heróis e escritores portugueses – Camões, Vasco da Gama, Mouzinho de Alburquerque. “Vi só os pedestais. Só ficou o Monumento aos Heróis europeus e africanos da Primeira Guerra Mundial, em Maputo”. E, ao falar com as pessoas, era perceptível um sentimento anti-português? “Entre os governantes sim, mas entre o povo não.”

Em 1985, no congresso internacional de escritores organizado em São Petersburgo (então Leninegrado) no âmbito das comemorações do quadragésimo aniversário da Vitória na Segunda Guerra Mundial, em que foi intérprete, conheceu Urbano Tavares Rodrigues e António Cardoso. E as suas primeiras traduções publicadas foram três poemas deste poeta angolano – “Nunca é velha a esperança”, “Ainda muitos teremos de morrer” e “Contrato” – que apareceram no jornal “Smena” (“Sucessão”), em 1986.

Escombros e flores

É durante os anos de ruína e caos da “Perestroika”, das senhas de racionamento e das filas intermináveis, que surgem os primeiros livros de traduções de Rodosski, uma colectânea de contos humorísticos brasileiros e uma antologia de poesia portuguesa dos séculos XIX-XX. “Para pessoas como Helena Golubeva e como eu, não escrever é o mesmo que não respirar. E é também preciso publicar. Poupámos em tudo para publicar os nossos livros.”

Em “A medalha, o revólver e a dúvida” (1993), para além do conto epónimo de Guilherme de Figueiredo, aparecem, entre outros, contos de Joaquim José de França Júnior, Antônio de Ancântara Machado, Artur Azevedo e Fernando Sabino. Em 1994, na antologia “Campo de Flores” (em homenagem a João de Deus), surgem Almeida Garrett, Alexandre Herculano, João de Deus, Antero de Quental, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, Vasco Miranda, Egito Gonçalves, Manuel Alegre e José Saramago.

Se os romances “Levantado do chão” e “Memorial do convento” eram já conhecidos dos leitores russos, os 19 poemas de Saramago publicados em “Campo de flores” – entre eles “Fala do Velho do Restelo ao Astronauta” e “Há-de haver…” – permitiram aos mesmos leitores apreciar, pela primeira vez, a obra poética do futuro Nobel português. Numa das suas estadias em Portugal, em que trabalhou e leccionou na Universidade do Minho, o tradutor teve o prazer de conhecer pessoalmente o seu poeta, “muito complexo, como homem e como escritor”. E as ideologias? Rodosski cita Heine: “A pena do génio pode ser mais genial do que o próprio génio”.

Rodosski tem traduzido e publicado, em livro e em diversas revistas literárias, autores como Frei António das Chagas, João de Lemos, António Feliciano de Castilho, Camilo Castelo Branco, Alexandre O´Neil, Fernando Guimarães, Urbano Tavares Rodrigues, Pedro Tamen, Vasco Graça Moura, Joaquim Pessoa, António Cândido Gonçalves Crespo, Machado de Assis, Érico Veríssimo e Carlos Nejar.

A sua grande referência na literatura portuguesa é Garrett, cujo papel nas letras portuguesas compara ao de Alexandre Pushkin nas letras russas. No prefácio de “Campo de flores”, escreveu – “Tal como Pushkin, Garrett foi um poeta, prosador e dramaturgo admirável, que fundou uma nova escola literária no seu país.” No seu artigo publicado nas Actas do Quinto Congresso Internacional de Lusitanistas (Universidade de Oxford, 1996), Rodosski estabelece vários paralelos entre a obra destes “dois poetas geniais, que nasceram, em 1799, em extremos opostos da Europa”.

Entre as obras de Garrett que traduziu, destacam-se “Um auto de Gil Vicente”, “O alfageme de Santarém”, “Frei Luís de Sousa” e o poema “Camões”.

O poeta e os valores

Em todos os volumes da revista “Esfinge”, da qual Rodosski é redactor pricipal, aparecem invariavelmente traduções suas de poesia portuguesa e de expressão portuguesa.

Esta revista surgiu de uma tertúlia literária, que se reunia na Biblioteca Tchekov, em São Petersburgo, e é publicada, seis vezes por ano, desde 2005. “É uma revista de inspiração tradicionalista, que se assume como herdeira dos poetas clássicos pré-revolucionários e dos valores por eles professados; poetas como Sologub e Balmont, que iniciaram a carreira antes da revolução, e que depois foram, quase todos, forçados a emigrar”. E valores que têm no amor o seu paradigma – “o amor puro, o amor a Deus, o amor pelo seu país. Afirmar estes valores é particularmente importante nos nossos tempos difíceis de hoje. Há um ditado que diz – aquele que não ama o seu próprio povo não é capaz de respeitar os outros povos. Mas aqueles que amam a sua cultura são muito abertos à cultura dos outros povos.” Descendente de uma antiga família de sacerdotes da Igreja Ortodoxa Russa, Rodosski sublinha: “Nunca fui ateu”.

O seu primeiro livro de poesia, “A luz que não se extingue”, foi publicado em 2000. Seguiram-se-lhe “Frutos do meu pensar predilecto” (2002), “O verbo dos tempos” (2004), “Rostos e faces” (2006) e “Autoretrato” (2007), antologia que assinala o quinquagésimo aniversário do poeta. Alguns dos seus poemas foram musicados por compositores russos.

As formas e os temas da poética de Rodosski são o reflexo especular da sua preferência literária pelos clássicos, dos valores que defende e das suas inquietações.

Assim, nas formas, encontramos dísticos, quadras, epigramas, madrigais, baladas, sonetos, oitavas, trioletos e sextinas. Nos temas, encontramos, sobretudo, o amor: o amor lírico e o amor pela Rússia. A poesia de Rodosski está imbuída da nostalgia e da beleza da Rússia e, em particular, da nostalgia e da beleza de São Petersburgo. O seu tempo é o tempo histórico, o trágico século XX, o tempo mágico da infância; os seus heróis são os seus antepassados, os príncipes e czares, os santos da Igreja Ortodoxa Russa, os poetas – incluindo ele próprio.

No posfácio de “Autoretrato” (por Irena Sergueeva) pode ler-se: “ (…) saber e Fé são as linhas mestras da poética do autor. E é para nós motivo de júbilo que o conceito de honra esteja aqui também presente – para nós, gerações que foram despojadas dos atributos do seu grupo social, da sua ascendência, dos túmulos dos seus antepassados, gerações que foram, no fundo, despojadas da sua honra.” A poesia de Rodosski dá vida à memória da Rússia, e o poeta vê nessa memória o ponto de partida para o renascimento do seu país, assente nos valores intemporais do Cristianismo e do respeito pelos seus antepassados.

Dieter Woll escreveu – “A ordem pela qual se sucedem os poemas de Mário de Sá-Carneiro é, em grande parte, susceptível de ser alterada. Do primeiro ao último giram sempre à volta da polaridade entre os dois extremos da idealidade e da realidade” (in “Realidade e idealidade na lírica de Sá-Carneiro”, 1968, trad. Maria Manuela Delille). Mutatis mutandis, pode dizer-se que a poética de Rodosski gira também sempre em torno da polaridade entre dois extremos, não do Eu idealizado e do Eu real do poeta de “Além”, mas sim entre os dois extremos que são a destruição e o renascimento da idealidade, isto é, entre os extremos da idealidade, dilacerada pela realidade, e da idealidade como alicerce para a reconstrução da realidade, a realidade futura da ancestral e riquíssima casa que é a Rússia.

(…)

Sempre foi, para mim, mais cara que a carreira,

A honra – Deus disso testemunha é.

E não são desgraça a nuvem escura e a tempestade sobranceira;

Ajudaram o saber e a Fé.

Andrei Rodosski, 2006 (excerto)

Ana Luísa Simões Gamboa, em São Petersburgo