Auto-entrevista – Maria Helena Ventura *

Baseio esta mini auto-entrevista num questionário pouco rígido, maleável, já que as perguntas, mais vezes formuladas em entrevistas ou por leitores comuns, têm sido colocadas de forma diferente.

O objectivo principal é dar informação sobre o romance Cidadão Orson Welles, o meu décimo sexto livro publicado em Março deste ano.

1 – P. O que a levou a escrever sobre Orson Welles, ou quando se entusiasmou pelo trabalho e pela figura deste cineasta a ponto de querer escrever sobre ele?

     R. Presumo que todos os autores escrevam sobre temas que os fizeram pensar e figuras que os marcaram, cumprindo uma das funções da literatura: questionar a vida. Afinal as ficções são construídas com símbolos, temas e personagens do real.

                Já ouvia falar de Orson em criança, muito antes de alcançar a dimensão do seu talento com várias facetas. Naquela altura apenas intuía uma grandeza que os seus pares fingiam não reconhecer. Mais tarde chamaram-lhe génio.

À medida que fui conhecendo melhor o seu trabalho e personalidade, descobri que era arrojado, provocador no bom sentido, capaz de romper com os esquemas tradicionais da realização de um filme, mesmo enfrentando múltiplas oposições para dar vida aos projectos.

Firme nas convicções e aguerrido, apresentava-se aos meus olhos com as qualidades de qualquer herói moderno. Mas tinha ainda outro talento que me fascinava: também era poeta. Sempre admirei quem, no meio de vidas complicadas, consegue arranjar tempo de qualidade para criar beleza num poema. Orson ordenava o caos que o rodeava criando arte, beleza, por isso me marcou tanto.

2 – P. Sendo uma ficção, porque não pensou num título diferente, Yasmina, por exemplo, já que esta personagem domina o livro todo?

     R. Há mil opções para intitular um livro, mais e menos óbvias. Enquanto esboço, apenas, o livro teve um título diferente, mas o enredo foi ganhando autonomia.

Yasmina descodifica os sentimentos próprios e alheios, enquanto personagem e narradora. Apresenta a sua história de mulher a um tempo vulnerável e protectora, como um tributo a O.W., grata pelos meses de enlevo que viveu com ele. Essa homenagem só seria plena chamando a atenção para o homem por detrás do cineasta. Daí o título.

3 – P. Vinha do romance histórico: A Musa de Camões, Afonso o Conquistador, Onde Vais Isabel e Um Homem Só. Rompeu com esse género literário?

     R. A pesquisa para construir uma ficção com base em factos históricos suga todas as energias do autor. É preciso que ele esteja bem documentado, mas gerir o amontoado de dados recolhidos é uma empresa esgotante.

                Escolher e rejeitar são dois tempos imperativos com que lidamos cada dia. E ainda assim, diante do romance histórico, é doloroso rejeitar o que deu tanto trabalho a pesquisar. Só que a ficção precisa do seu espaço, por isso o livro se chama romance. Há uma altura em que é urgente começar o trabalho de composição aliando pesquisa à criação literária. Quando chegamos ao fim, extenuados, sentimos alívio.

                Cidadão Orson Welles estava agendado. Preencher o esboço inicial converteu-se num trabalho apaziguador que fluiu sem constrangimentos. Quando dei por mim estava concluído. E longe de sentir cansaço, estava apta para outros projectos, até romances históricos.

Este intervalo (interlúcido) deu fruto – um romance com menos páginas mas de grande amplitude. E ensinou-me que o autor precisa de distanciamento em relação aos géneros que trabalha, seja entregando-se a um ócio merecido, seja alterando rotinas, explorando outras formas de fazer. Mas outro romance histórico virá.

4 – P. Pensa que tem um estilo próprio?

      (Converti em pergunta uma afirmação frequente de alguns dos que me lêem, reforçada depois de Cidadão Orson Welles)

       R. Felizmente, como a maioria dos autores, acho que sim. Nunca tentei mudar, a não ser na preocupação de burilar as frases para adequar o estilo ao universo ficcional criado. Mas ainda que tentasse, acho que seria sempre notória uma forma de expressão que identifica o meu trabalho. Não quer dizer pior nem melhor, só com características próprias.

5 – P. Acha que um livro deve ter uma fórmula simples para vender, para se adequar ao mundo competitivo, para servir a sociedade sem tempo para ler?

     R. Há obras-primas que não vendem, há cinema de autor que não consegue alcançar êxitos de bilheteira, mas esses trabalhos estão bem identificados e hão-de ser referências. Se não for nos tempos de hoje, um dia será.

Os leitores interessados sempre hão-de ler. Quando os leitores ocasionais forem absorvidos por novos apelos, ficarão sempre os outros. E esses são cada vez mais exigentes.

Notamos que os livros, por imposição do marketing editorial, são mais apelativos na capa. Mas se no conteúdo apenas obedecem a fórmulas competitivas, não criam nada de novo, repetem. Não podem satisfazer esses leitores interessados.

                Mac Kay dizia que uma mensagem só se converte em informação quando organiza os elementos de forma inovadora. Com o livro acontece o mesmo. Ainda que o tema seja conhecido, tem que haver um novo ângulo de abordagem no processo criativo para cativar.

                A melhor maneira de um autor respeitar os leitores é partir do princípio que eles são inteligentes, que vão exigindo mais trabalho de criação. E a criação não se subordina a fórmulas simplistas, segue a própria subjectividade do autor na construção de mundos ficcionais onde se note coerência, questionamento dos problemas reais e respeito pelo próximo.

* Maria Helena Ventura nasceu em Coimbra, vive no concelho de Cascais e é Mestre em Sociologia. Os seus poemas de adolescente começaram a sair em publicações regionais e no jornal República, já depois de lhe ter sido dedicado um espaço numa das sessões do programa radiofónico Tempo de Juventude. Começou a publicar livros (poesia) em 1983, no mesmo ano em que se tornou membro da Associação Portuguesa de Escritores. Em 1999 publica o primeiro romance, Mar Mulher, sobre a diáspora do povo timorense, precisamente quatro anos depois da tese de Mestrado sobre o mesmo tema. A partir de então nunca mais abandona a ficção. Tem, até ao momento, sete livros de poesia e nove romances, o último Cidadão Orson Welles, saído em Março de 2011.