«Os Pretos de Pousaflores», de Aida Gomes; «Inveja», de Mário Avelar

Vejamos. As práticas não ajudam. Falar de literatura africana em Portugal equivale a contar pelas mãos. O resultado é parco, sabe, sobretudo, a pouco. Não em qualidade, antes em quantidade. Os ditos novos são sempre os mesmos, logo velhos. O que é paradoxal, sem dúvida, tanto mais que tanto por aí, aos ventos, se apregoa a lusofonia, a sua urgência, tal como para outros azimutes se clama e decretam acordos ortográficos que está ainda para se ver que bem trazem a um pretenso maior conhecimento das literaturas irmãs em terra outrora mãe. Adiante, isto para dizer que «Os Pretos de Pousaflores», de Aida Gomes, é uma verdadeira oferenda. E, espanto maior: primeiro romance! Apetece perguntar, o que andou a fazer Aida Gomes todos estes anos? Saibamo-lo, atentando na resposta biográfica que, indirecta, surge em badana. Aida Gomes nasceu no Huambo, Angola. Viveu (vive?) na Holanda desde 1985 onde cursou Ciências Históricas e fez mestrado sobre processos históricos e políticos na África sub-sahariana. Depois, viajou e trabalhou no Cambodja, Moçambique, Suriname, Angola, Libéria, Sudão e Guiné-Bissau, desenvolvendo actividade em projectos comunitários para jovens, na formação de jornalistas e na construção de paz e diálogo político, isto alternando com, ou no âmbito de missões de paz da ONU. Em suma, fez aquilo que talvez mais faz falta a um escritor: viver. E, no fundo, é isso que bem está expresso neste soberbo romance, vida, ou antes, muitas vidas. Vidas contadas a várias vozes, extremamente bem (auto-)delineadas, percebidas e entendidas no âmago dos sentimentos e emoções, mas também no modo como percepcionam o outros, ou os outros que de fora as vêem e com elas interagem. A história, num muito curto resumo: Silvério Prata, português de gema, da aldeia de Pousaflores, perto de Coimbra, rumou outrora às Áfricas portuguesas a fazer vida e ganhar o mundo. Não correram os planos como a família prevera e os primos lhe faltaram, acabando ele por, após participar numa campanha de pacificação de uma tribo, a esta se juntar, devindo, excepto que não pela cor da pele, um dos seus. Longos anos fica em África. Tem três filhos de três mulheres diferentes. Um dia, já com o processo de independência angolana em marcha, volta a casa, à pátria onde, passados quase quarenta anos, já ninguém o esperava, sequer a irmã que o vê chegar descalço de fortuna e com três filhos negros, aqueles a quem mais tarde chamarão na aldeia os «pretos de Pousaflores». Depois vem a adaptação vista pelos olhos de cada uma das personagens, quer aqueles de regresso, quer aqueles que os acolheram – um notabilíssimo concerto de vozes e perspectivas da vida, diga-se, naquilo que de mais notável encerra a escrita polifónica de Aida Gomes. Paralelamente, entre idas e vindas do passado para o presente e vice-versa, há ainda a história de Deodata, uma das suas mulheres deixadas para trás que não desiste de procurar a sua filha por entre destroços de um país em guerra fratricida, e há ainda a curiosa, verdadeira e por conhecer história do encontro de Livingstone com Silva Porto, que sobremaneira interessa a Silvério. O passado colonial como se visto num postal antigo, de cores e memórias desmaiadas, o presente num colorido rude e tépido de um Portugal pobre e à deriva nos anos 70 e 80, são estes os panos de fundo deste romance singularmente bem escrito, singularmente original e bem-humorado (magníficos, por exemplo, o solilóquio da Dona Bela para com Belmira, tal como as reflexões “existenciais” de Justino), tão sóbrio quanto comovedor. Em suma, mais uma (grande) autora a escrever em português.

Pedro Teixeira Neves

«Inveja», de Mário Avelar, Assírio & Alvim,  176 pp.

A inveja, tal como a poesia, bem poderia dizer-se ser apanágio português. Não sei se seria exagero chegar ao ponto de dizer que somos um país de invejosos, mas que por aí muito poeta na matéria abunda, parece ser bem provável. Pelo menos é o que em parte ressalta da leitura do mais recente romance de Mário Avelar, justamente de sua graça «Inveja». É um livro muito curioso, muito bem escrito, muito bem-disposto ou irónico, muito interessante e, de certa forma, corajoso. Sim, porque não é todos os dias que somos capazes de nos ver ao espelho! Sobretudo para nele vermos os nossos defeitos. No caso, a inveja, pecado que, lido o romance, assaz praticamos sem que inferno algum nos pareça ferver o suficiente para nos assustar ao ponto de nos redimirmos em sãos comportamentos conforme a uma qualquer moral. Ora bem, posto isto, a história: tudo se passa em cerca de meia-hora, o tempo qb para uma investidura ou uma tomada de posse (e muitas pomadas para a tosse, diria O’Neill…). Situemo-nos: um palacete alfacinha no qual o respeitoso Instituto Camões procede à supracitada investidura de um novo presidente. Que presidente? – eis a questão, fundamental, de resto. Isto porque Francisco Villa-Verde, outrora Vila apenas com um l, outrora também mais conhecido pelo nome de guerra Xico-Xicão, escapa, pelo seu passado “errante”, aos trâmites do que é normal decorrer no âmbito académico em matéria de progressão profissional e social. Na verdade, Francisco, aos olhos dos seus pares invejosos, não é detentor de predicados curriculares dignos de lembrança. Ora é durante o rame-rame burocrático da tomada de posse, que, entre olhares e pensamentos cruzados que vagueiam pelos circunstantes ao acto, que se vai delinear um quadro histórico do país, morais e costumes, ao longo das últimas décadas. Verdadeira crónica de costumes, aos nossos olhos perpassa um cortejo de figuras, figurantes e figurões que bem atestam o país de onde viemos e que hoje somos. E, sobretudo, que bem atesta o meio comezinho, intriguista, interesseiro, de pose e parecença, que é aquele dos movediços corredores de poder nas mais variadas áreas da sociedade, da política à cultural. Jocoso, sarcástico, irónico, este romance de Mário Avelar assume diversas qualidades, entre elas a coragem de pôr tudo isto a nu, sobretudo num meio literário como o nosso em que um estranho apelo pelo cinzentismo auto-contemplatório parece fazer submergir a generalidade das almas criativas. «Chega de Saudade», apetece por vezes dizer ao país de poetas cuja literatura parece ter desaprendido o riso. Valham as excepções, como esta. Mas atenção, não nos enganemos: o riso é uma arma. E aqui, por via do humor, fala-se a sério de muitas coisas sobre as quais seriamente devíamos pensar ou que nos deviam deixar a pensar a sério!

Pedro Teixeira Neves